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Andrea Riccardi

Historiador, fundador da Comunidade de Sant’Egidio
 biografia

Santidade, Beatitudes, Eminências
Ilustres Representantes
das Igrejas cristãs, das comunidades eclesiásticas, das grandes Religiões mundiais,
hoje Chipre torna-se na encruzilhada de muitos homens e mulheres de religiões e culturas diferentes que se encontram, falam, dialogam, rezam uns ao lado dos outros, uns pelos outros.
Saúdo todos os participantes e agradeço, em particular, o Senhor Presidente da República, Dimitris Christofias, pelas suas palavras de boas-vindas e pelo cordial acolhimento do Governo cipriota.

Formulo os meus melhores votos para o sucesso das suas acções de paz e de diálogo. Enquanto dirijo a todos os líderes religiosos aqui presentes a minha gratidão, não posso deixar de realçar o papel decisivo de Sua Beatitude Chrysostomos II, Arcebispo de Nea Justiniana e de Toda Chipre, na realização deste evento. Dele partiu o convite para virmos para esta ilha. Mas também a Igreja de Chipre que nos acolhe com generosa hospitalidade. O Arcebispo testemunha, deste modo, uma grande tradição de acolhimento típica da gente cipriota.
Agradeço todos os que trabalharam na realização deste evento. Agradeço a activa embaixada de Chipre junto da Santa Sé, o senhor Charilaou e muitos outros que não cito por falta de tempo. Saúdo os quase mil que vieram da Itália e da Europa que, entre outras coisas, oferecem o próprio contributo voluntário para o sucesso destes dias.
 
O povo de Chipre sabe muito bem o que significa a paz, porque conheceu o sofrimento da guerra e do abandono das próprias casas. Chipre tem uma longa história de convivência entre duas comunidades étnicas e religiosas. Mas, há alguns decénios, tornou-se na última porção de Europa ocupada. Chipre conhece a dor da divisão, do ódio e da falta de diálogo: por isso, acolhe com alegria este nosso encontro. Alegra-se quando a pomba da paz se pousa nesta ilha e daqui parte o arco-íris da paz. Temos a ambição de transformar esta ilha num lugar de encontro e de diálogo no Mediterrâneo.
As terras do Mediterrâneo são mundos onde vivem juntas pessoas diferentes, religiosa e etnicamente. A convivência é difícil. Estou a pensar no vizinho Líbano. Como não ter no coração, a incrível situação da vizinha Terra Santa? Viver juntos é o desafio da margem meridional e setentrional do Mediterrâneo, com a nova emigração. É o do Médio Oriente e do Iraque. Mas também de muitas outras partes do mundo. Para vivermos juntos, é preciso entender que a presença do próximo, mesmo se muito diferente, é uma dádiva. Na verdade, a civilização é tal, se não tiver uma só cor, mas um arco-íris, fruto de mestiçagens profundas entre histórias e identidades diferentes. O mundo onde o outro, o diferente, é suprimido, é a terra da barbárie. A verdadeira civilização é a do se saber viver juntos.
E, no entanto, para que serve falarmos hoje de religiões e de civilização da vida em comum, quando o mundo se vê a braços com um desastre financeiro, cujas consequências são imprevisíveis?
Atravessamos um momento difícil da história. Muitas certezas foram abaladas. Serão os pobres do mundo que pagarão um preço elevado por esta crise, enquanto que os países industrializados focalizam a própria atenção na tutela dos próprios contribuintes. Anota-o com mágoa um recente apelo do meu amigo Michel Camdessous, de Kofi Annan e de Robert Rubin. Que, no entanto, observam que esta crise pode representar um impulso para mudanças radicais. Precisamos de mudanças radicais. Mas, para as poder realizar, precisamos de mais espírito e mais humanidade. Um espírito e um sentido de humanidade que mostrem como é intolerável um mundo com tanta miséria e ainda marcado por muitos conflitos.
Viemos a Chipre, ilha mediterrânea linda e ferida, por um caminho que mostrou a força pacífica e eficaz do espírito.
A nossa história vem de longe. Começa em 1986. Na altura, verificou-se um evento excepcional na histórica cidade italiana de Assis, pátria de São Francisco. O convite sincero de um papa, João Paulo II, reuniu muitos líderes religiosos da terra. Não foi uma negociação. Apenas um encontro. Palavras simples, reconhecer-se como irmãos, rezar uns ao lado dos outros. Muitos se admiraram no clima da guerra fria, sobre a secularização vencedora: as religiões não eram um facto arcaico, destinado a desaparecer com o progresso da modernidade? O que é que as religiões podiam fazer perante o sistema político-militar da guerra fria? O evento de Assis revelou um espírito: o espírito de Assis que ainda sopra forte. Nunca sucedera nada de tão simples e decisivo. João Paulo II, com olhar profético, tinha intuído que as religiões assumiriam um papel decisivo. Na noite de 27 de Outubro de 1986, na colina de Assis, sob um grande frio, perante um céu limpo, disse: “Juntos, enchemos os nossos olhares com visões de paz: elas libertam energias para uma nova linguagem de paz, para novos gestos de paz, gestos que quebrarão as correntes fatais das divisões herdadas da história ou geradas pelas modernas ideologias...”
Ver uns ao lado dos outros, os líderes das grandes religiões, cristãos, hebreus, muçulmanos, budistas, hinduístas, no respeito e num clima espiritual, foi uma visão de paz. Fazia muito frio, mas o céu do futuro estava claro. Era a utopia de um papa místico? O sonho consolatório diante da potência de dois impérios da guerra fria?
Nós, da Comunidade de Sant’Egidio não acreditámos. Estávamos em Assis naquele 27 de Outubro de 1986 e sentimos o frémito da história e o fascínio de uma profecia. João Paulo II disse, no fim do seu discurso: “A paz é um estaleiro, aberto a todos e não apenas aos especialistas, aos sábios e aos estrategas”. Respondemos: aquele estaleiro, é o nosso estaleiro! É preciso trabalhar no estaleiro da paz: há demasiadas guerras em curso. Não só especialistas. Nós, na altura éramos sobretudo jovens, sentimos que a paz era o nosso estaleiro. Que o espírito de Assis deveria continuar a soprar. E continuámos obstinada e apaixonadamente a reunirmo-nos, todos os anos. Houve quem dissesse que era inútil: que o nosso encontro anual era uma repetição ritual; as religiões não mudariam o mundo. Mas Assis foi uma profecia: pessoas diferentes juntas no sinal da paz, atentas à realidade do humano.
A Comunidade de Sant’Egidio é um pequeno povo de crentes, filho da Igreja católica, que vive em muitos lugares do mundo, na Europa, na África, na Ásia, na América: muitos são jovens, gente pobre e simples, somos todos amigos dos pobres e dos necessitados. É verdade, os primeiros amigos de Sant’Egidio não são os poderosos, mas os pobres, os das cidades europeias, os doentes de SIDA em África, os prisioneiros, os mendigos... Os pobres sabem que a guerra é a mãe de todas as pobrezas e que conflito e violência geram miséria e que são eles os primeiros a pagarem a conta. Crescidos na escola do Evangelho, repudiamos a guerra e sentimos que a paz é a nossa vocação. A paz, não é só o fim da guerra: é solidariedade com os muitos, demasiados, milhões de pobres no mundo. Se quisermos a paz, temos de ir ao encontro dos pobres! Não há paz quando tantos milhões de mulheres, crianças, homens sofrem a violência da pobreza! Esta não é teoria, mas consciência viva de quem viu sofrer os pobres. Não se pode suportar tanta dor assim.
Desde 1986 que decidimos assumir o espírito de Assis e levá-lo para os quatro cantos do mundo. Como um animal de carga, levando-o para todo o lado. Tanto é verdade, que hoje é difícil separarmo-nos deste espírito.
O espírito de Assis manifesta a força do espírito. Em Assis assistiu-se ao abraço entre homens de religiões diferentes que não se entendiam há séculos, tinham tido contrastes ou pior ainda tinham lutado uns contra os outros. Compreendemos a ligação profunda ente um autêntico espírito religioso e a procura do tesouro da paz. Vimos como o mundo do espírito tem uma sua força, força humilde e fraca, em relação à arrogante do poder político e económico. É a força da oração, do amor, do diálogo, do encontro. É verdade, o mundo espiritual possui uma sua força pacífica e pacificadora, que muda os homens e a história. Com efeito, depois de Assis 1986, alguns gestos de paz, não violentos, romperam as divisões das modernas ideologias. Foi o fim do mundo soviético, que queria construir um futuro novo, violando a liberdade do homem. Assistimos à força da paz e dos valores do espírito da África do Sul de Nelson Mandela. O espírito de Assis mostrou-se eficaz também no trabalho da Comunidade de Sant’Egidio. Esta, em 1992 concluiu o acordo de paz entre governo e guerrilha em Moçambique, depois daquele país ter pago um preço de um milhão de mortos. A força do espírito pode acabar com a guerra.
Hoje, as religiões ocupam a cena da vida pública com muita mais evidência do que há vinte anos atrás. André Malraux dizia que o século XXI será o das religiões ou não será. Mas, infelizmente, as religiões são também gasolina atirada ao fogo da guerra. É a história dos fundamentalismos religiosos, do ódio e da violência em nome de Deus. Sim, as religiões podem ser água que apaga o fogo do ódio, mas também gasolina que o inflama. Por isso, devem cultivar uma linguagem de paz. Por isso, sobretudo, devem cultivar a profunda procura de Deus, que leva a encontrar o espírito de paz que está na base de qualquer religião.
Estivemos o ano passado em Nápoles, num encontro de paz circundado por um grande fervor de povo (e agradeço, mais uma vez, o card. Crescenzio Sepe, arcebispo de Nápoles). Na altura, Bento XVI, encontrando os líderes religiosos, falou do autêntico espírito de Assis e disse: “opõe-se a qualquer forma de violência e ao abuso da religião como pretexto para a violência. Diante de um mundo lacerado por conflitos, onde às vezes se justifica a violência em nome de Deus, é importante reafirmar que nunca as religiões se podem tornar num veículo de ódio; nunca, invocando o nome de Deus, se pode chegar a justificar o mal e a violência. Pelo contrário, as religiões podem e devem oferecer preciosos recursos para construir uma humanidade pacífica, porque falam de paz ao coração do homem.”
O espírito de Assis opõe-se à violência em nome de Deus. Por isso, o espírito soprou com força em Nápoles e sopra aqui com muita força. O facto de estarmos a falar, de nos encontrarmos, significa soprar com todo o fôlego dos nossos pulmões, para que este espírito cresça, abrace mentes e corações, se torne no vento de uma nova época para as mulheres e os homens, para todo o mundo: que se torne numa cultura e num clima de paz.
Muitos afirmam que uma civilização de paz é impossível e que é preciso resignarmo-nos à dura realidade. Dizem que esta é a natureza do homem e dos povos. São os que acreditam que a guerra cria a paz, apesar de deixar, quase sempre, uma herança de veneno. São os que afirmam que a paz pode advir só através do desenvolvimento do mercado, que se entregam à única providência verdadeira para eles: o mercado. E, no último mês, assistimos ao fracasso dessa confiança no mercado. É preciso ser racionais e saber aprender a lição da história. Não será a providência da economia a trazer a paz. Não será um único país, por mais poderoso que seja. Não será um único actor. Hoje, os actores e os protagonistas da história são muitos e fortes. Não somos sonhadores, mas realistas. A realidade é complexa, determinada por muitos.
Quem caminhou na estrada do espírito, sabe muito bem que a realidade não pode ser reduzida apenas à economia e às leis brutais da força. É possível um mundo novo: não como o fruto de uma magia, mas como um processo paciente de construção de uma civilização do saber viver juntos, no pequeno diálogo quotidiano, no encontro, no respeito pela liberdade e a personalidade do próximo, na solidariedade com os mais pobres, com os pequenos, com a vida em todas as suas manifestações e épocas. Para construir um mundo novo é preciso mais humanidade e mais espírito. Humanidade e espírito podem realizar uma verdadeira comunidade humana, uma comunidade de povos.
Não será um especialista, nem um poderoso, nem um homem só, a construir um mundo novo. Mas serão os povos, com a ajuda de Deus, respeitando todos. É preciso mais espírito, espírito de paz, espírito de compaixão nesta época: pode ser a alvorada de um mundo melhor ou um período de caos.
As religiões dão esperança a milhões de mulheres e de homens: na possibilidade de se aperfeiçoarem pessoalmente, num mundo melhor, na vida eterna. As religiões são um património de esperança. Mas acaso, não estaremos demasiado resignados à realidade da guerra, dos muitos conflitos armados, de demasiada pobreza? Não estaremos demasiado resignados a uma mentalidade de conflito permanente entre nações, entre culturas, entre religiões? Não serão, precisamente, os homens e as mulheres, crentes, que são portadores da esperança?
É por isso que estamos cá: para nos confrontar, dialogar, estreitar amizades que duram e que afastam o ódio que demasiadas vezes é semeado nas mentes.
Devemos, ilustres amigos, esperar numa civilização de paz verdadeira, feita de repúdio à guerra, de convivência sincera entre culturas e religiões diferentes, de solidariedade com os mais pobres. Devemos esperar que do mundo do espírito brote um verdadeiro humanismo, capaz de compaixão. Diferentes são as nossas convicções, as nossas tradições, a nossa fé. No entanto, isto não nos leva ao ódio ou ao desprezo. Nem sequer nos induz a anular as diferenças. Não seria justo! Mas a paz na diferença é o verdadeiro sinal de que o nosso tempo necessita: sinal de humanidade, de liberdade, de riqueza. Por isso, estamos infinitamente gratos a todos vós que, desta linda Chipre num mundo difícil, enviareis um sinal de paz: o da pomba e do arco-íris.